Observações sobre o outro: o indígena sul-americano e a erva-mate
Nota: O texto a seguir traz uma reflexão a respeito da figura do "outro", ou seja, aquele indivíduo com características culturais próprias, mas que ao olhar do colonizador, neste caso, o europeu dos séculos XVI e XVII, obtém uma denominação bárbara, não-civilizada, implantando ao indígena de forma compulsória, os costumes, a cultura e a religião européia. O objeto escolhido que é um dos elementos do etnocentrismo europeu é a erva-mate, alcunhada pelos jesuítas como a "erva-do-diabo", uma bebida pagã, que não condizia com os preceitos católicos daquela época.
Erva-mate: a linha tênue entre o jesuíta
e o descobrimento do outro.
Dos vários fatores históricos que
aproximaram o indígena paranaense e o jesuíta espanhol, a erva-mate é o que
merece destaque neste texto. Para o jesuíta, chegar a um ambiente novo e ao
mesmo tempo estranho, é estar carregado de novas informações e olhares a
respeito de costumes completamente rudimentares do habitante até então
desconhecido. Paralelo a essa questão, pensa-se em Michel Foucault e o texto A vida dos homens infames (1977).
Infame, no sentido de pensar uma imagem invisível daquilo que para o jesuíta,
era até então desconhecido e que uma vez percebendo os costumes daquele ser
novo, é preciso em grande medida, moldá-lo ao seu padrão, neste caso, religioso
e europeu.
Antes da influência dos jesuítas, os
colonizadores espanhóis, descobrindo de forma gradativa pedras preciosas e
outras riquezas nas terras sul-americanas, descobriram também o indígena, que
além de exótico, era parte da força motriz para a exploração dessas riquezas,
as quais seriam enviadas à coroa espanhola. Chamou-se encomiendas o sistema de taxa que o índio “devia” ao adelantado, seu conquistador. Tal
“dívida” se referia aos serviços que os adelantados
prestavam para os indígenas como proteção contra inimigos, iniciação a
catequização, escambo. No final, a “dívida” acabou com o índio sendo escravo
dos conquistadores espanhóis. Num primeiro momento observa-se uma relação de
poder que tende tornar o indígena mão de obra barata para os interesses da
coroa. O papel de infame do indígena ganha um primeiro destaque; sai o
invisível e desconhecido ameríndio que possui uma cultura única e entra o
ameríndio escravo, um dos primeiros papéis deste protagonista nos livros de
história e nos documentos de época.
O segundo papel deste ameríndio é o
que vai de encontro com os fragmentos de um documento contido no trabalho de
Temístocles Linhares; trata-se da Carta
del jesuita Diego de Torres a la Inquisición de Lima sobre lo que convenia
remediar en las provincias del Paraguay y otras datada de 24 de setembro de
1610. É neste documento que a erva-mate se torna a linha tênue entre o jesuíta
e o indígena. Com o plano de catequização dos indígenas aprovado pela coroa, os
jesuítas começam a executar seu plano de fé, já com o intuito anteriormente
visto de torná-lo civilizado para ser instrumento de exploração de riquezas. Diante
de vários costumes, que ao olhar do jesuíta são novos, o que chama a atenção é
o uso constante da erva-mate. De forma rudimentar, os indígenas bebiam o mate
num porongo e utilizava de uma espécie de canudo (hoje, conhecido como bomba) com um
trançado bastante engenhoso, que evitava que as folhas chegassem ao longo da
bebida. Tal costume era diário e poderia ser bebido tanto com água quente,
quanto água fria.
O objeto veio à tona. E com ele, a
relação fortemente ligada com os “homens infames” de Foucault. Ele já dizia em
parte do seu texto: “Divertamo-nos, se quisermos, vendo aí uma revanche: a
chance que permite que essas pessoas absolutamente sem glória surjam do meio de
tantos mortos, gesticulem ainda, continuem manifestando sua raiva, sua aflição
ou sua invencível obstinação em divagar, compensa talvez o azar que lançara
sobre elas, apesar de sua modéstia e de seu anonimato, o raio do poder”. Ou
seja, é necessário que exista o outro para que exista a história; e na bagagem,
existe as relações de poder, em caso mais específico deste texto, o biopoder.
Na carta do jesuíta Diego de Torres,
é possível perceber fortemente o biopoder europeu em relação ao não civilizado,
ao estranho, ao pagão. A bebida da erva-mate foi enviada por um deus pagão,
neste sentido, um deus que não pertence aos ditames da igreja católica.
Partindo desse argumento, o jesuíta se apropria dos elementos inerentes à
erva-mate: é um alimento diurético, revigorante e, comparado ao álcool, também
proporciona o vício: eis que surge a “erva do diabo”.
O jesuíta Diego de Torres, segundo
Linhares, era o “provincial da Companhia nas Províncias do Paraguai, Tucumán e
Chile [...]” (p. 9) e o autor da carta que traz, segundo eles, os males que a
erva-mate fez ao indígena no processo de colonização e catequização. Novamente
segundo Linhares, a carta mostra que o “mate e seus ferventes materos, como seria logo de imaginar,
eram nela tachados de nefandos à religião, à moral e à saúde dos indivíduos”
(p. 9-10). Mudar todo o conceito de religião do indígena em seu território e
condenar a erva-mate fazia parte de sua missão. Grande argumentador, Diego de
Torres afirmava que a erva-mate fazia não só mal ao corpo como também ao
espírito: “Casi todos los que usan de este vicio dicen em confesión y fuera de
ella que es vicio, pero que verdaderamente no pueden enmendar y entiendo que
asi lo creen, y de cierto se inmienda uno, y lo usan cada dia, y algunas veces
com harto daño de la salud del cuerpo y mayor del alma” (LINHARES, 1969, p.
10). Diante de um poder estabelecido em leis europeias e católicas, o indígena
não teve vez. Sua religiosidade e seus costumes estavam dominados por todos os
lados. A erva-mate era o elemento que faltava para o indígena se “auto
condenar” diante dos preceitos dos jesuítas e da igreja católica. Dos vários
argumentos que chamam a atenção na carta de Diego de Torres, um deles fala
sobre os sacramentos e a dificuldade que os jesuítas enfrentavam no momento do
sacramento da eucaristia. Os argumentos sobre os malefícios do mate no momento
da eucaristia na visão de Diego Torres eram: “primera porque no puede aguardar
que se diga la misa sin tomar esta yerba, y segunda porque, habiendo comulgado,
provoca esta yerba una gran indecencia para el Santísimo Sacramento” e
acrescenta: “salen com gran nota de la misa a orinar frecuentemente” (LINHARES,
1969, p. 10).
No fragmento observado, é possível
perceber os elementos de representação (a erva-mate sendo uma bebida enviada
por um deus pagão se torna símbolo de vergonha para o santo sacramento
católico) e apropriação (a erva-mate é puramente diurética e sair para urinar
era considerado desrespeito gravíssimo). O biopoder é o elemento central de
dominação do colonizador espanhol; e o segundo momento observado que trouxe
novamente o indígena no centro das atenções etnocêntricas, foi o seu vício, a
erva-mate.
Michel Foucault ajuda a fechar o
raciocínio em torno do indígena até então infame e que seus elementos culturais
foram apropriados pelos colonizadores e jesuítas para exercer um poder que
transformou a vida do até então desconhecido índio sul-americano: “Vidas que
são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque com um
poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que só
nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis as infâmias das quais eu
quis, aqui, juntar alguns restos”. Tais acasos é que o torna o indígena um dos
protagonistas de nossa história e que ainda é visto como “minoria”. Cabe ao
indígena uma dívida de elementos culturais que são utilizados por nós no
dia-a-dia e que nem percebemos que são de tal origem. Puxando para algo mais
próximo, aqui no Paraná temos muitos elementos culturais deixados pelos
indígenas e que poucas vezes tem um valor importante e percebido. Tais
elementos são:
1 - influência étnica: os milhares de índios que
habitavam o Paraná foram em sua maior parte eliminados definitivamente ou
incorporados à sociedade, pela miscigenação;
2 – vocabulário: os
termos de origem tupi-guarani ou jê no linguajar diário são muitos, como por
exemplo: Paraná, Curitiba, Paranapanema, Paranaguá, Iguaçu, Tibagi, Marumbi,
canjica, butiá, vossoroca, guri etc. Sua contribuição linguística ocorre
sobretudo nos nomes de acidentes geográficos, como rios, serras, picos, etc;
3- alimentação: a
farinha de mandioca é de uso muito difundido entra a população. A importância
desta farinha para o índio como a da farinha de trigo para o homem branco. A
eliminação do ácido venenoso que a mandioca brava possui proporcionou uma
grande fonte de alimento para os índios. Seu uso é hoje conhecido em todas as
camadas sociais. Também o uso do mingau, canjica, paçoca, etc. tem origem entre
os índios;
4 – o uso da eni
(rede), hoje generalizado: os índios a usavam para dormir em suas ocas, porque
não tinham cama;
5 – a erva-mate:
foram os índios da família tupi-guarani que ensinaram ao homem europeu a
utilização desta erva. Hoje seu uso é definitivo nas tradições sulinas, sob a
forma de chá quente, gelado ou do tradicional chimarrão;
6 – o fumo: os
europeus não conheciam o fumo. Vieram conhecê-lo na América. Os índios
utilizavam-se desse vegetal, fumando cachimbos de barro. Hoje é usado
universalmente sob a forma de cigarro ou charuto;
7 – o costume do
banho diário e do cabelo cheio de loção: são elementos aprendidos com os índios
(WACHOWICZ, 2006, p. 16).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
COSTA,
Samuel Guimarães da. A Erva Mate.
Curitiba: Grafipar, 1989.
LINHARES,
Temístocles. História Econômica do Mate.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1969.
WACHOWICZ,
Ruy Christovam. História do Paraná.
Ponta Grossa: Editora UEPG, 2010.